A visita a um museu ou a um monumento antigo pode causar muitas surpresas aos visitantes que olham o passado com os olhos do presente. Os anacronismos são, então, inevitáveis. Começam a ver objetos do nosso tempo inseridos no passado longínquo e, sem conhecimento da História, não demoram a formular teorias delirantes.
Extraterrestres visitaram a Terra no passado? Artistas contemporâneos viajaram no tempo? Pessoas do passado foram transportadas para o futuro? Essas e outras teorias malucas alimentam revistas, programas de TV e canais na Internet especialistas em bizarrices de todo tipo. Listamos a seguir 10 obras que se encaixam nesses delírios e explicamos cada uma delas.
1. “A Crucificação”, autor desconhecido, séc. XVI
O afresco bizantino na catedral de Svetitskhoveli, na Geórgia, chama atenção pelas duas figuras laterais, logo abaixo das mãos de Jesus. Parecem duas águas-vivas. Ufólogos dizem que são óvnis que surgiram no céu no dia da crucificação de Jesus.
Entretanto, de acordo com o especialista em arquitetura e arte ortodoxa Andrew Gould, são símbolos da pintura ortodoxa representando o Sol (em vermelho) e a Lua (em azul). É uma referência ao Evangelho, segundo o qual, depois que Jesus morreu, o Sol desparececeu, escureceu por três horas e a Lua apareceu brilhante no céu. A representação dos astros é para enfatizar o significado cósmico da morte de Jesus.
2. Escultura grega, 100 a.C.
A lápide funerária de uma aristocrata grega, exposta no Museu J. Paul Getty, nos EUA, mostra a mulher falecida abrindo um objeto que lhe é mostrado por uma criança. O objeto de com dois furos na lateral foi interpretado por leigos como sendo um notebook incluindo as portas USB. E eles ainda afirmaram que isso “prova” que os sacerdotes do oráculo de Delfos podiam se conectar com o futuro e conhecer suas tecnologias!
A lápide, oficialmente chamada de “Túmulo Naiskos”, data de 100 a.C. e retrata uma mulher bem vestida descansando em uma poltrona almofadada e estendendo a mão para tocar a tampa de uma caixa rasa segurada por uma criada. A caixa poderia ser um espelho com dobradiças (conhece-se alguns exemplares) ou um porta-joias. Em honra aos seus mortos, os gregos esculpiam cenas representando aquilo que o falecido mais apreciava: joias, armas etc.
3. Celebração da Eucaristia, de Ventura Salimbeni
Essa pintura do século XVI, retrata, na parte superior, a Santíssima Trindade (Pai, Filho e a pomba representando o Espírito Santo) que seguram um objeto esférico com duas hastes. Para os ufólogos, a esfera metálica com “antenas telescópicas” e uma estranha luz no alto é um satélite com uma potente câmera filmadora (o círculo azul menor, na parte de baixo da esfera), capaz de registrar cada ser humano na terra.
Nada disso. O objeto é uma Sphaera Mundi, a representação do universo que costumava ser comum na arte religiosa, e as hastes são cetros, símbolos da autoridade do Pai e do Filho.
4. “O esperado”, de Ferdinand G. Waldmüller, 1860
Uma mulher caminha tranquilamente enquanto segura, com muito cuidado, um objeto entre suas mãos. Essa imagem viralizou, na Internet, modificada com a inserção de um feixe de luz que iluminava o rosto da jovem dando a impressão que ela segurava um smartphone.
O artista escocês Ferdinand Georg Waldmüller, autor do quadro “O Esperado” (The Expected One) pintou um livro de orações na mão da jovem. Ela está concentrada em suas orações, e não percebe o rapaz que a espera para entregar-lhe flores.
5. “Homem entregando uma carta”, de Pieter de Hooch, 1670
Em 2016, durante uma conferência sobre tecnologia, o CEO da Apple, Tim Cook afirmou que, ao visitar o Museu de Amsterdã, surpreendeu-se ao ver um iPhone em uma pintura de 350 anos atrás. Seu comentário viralizou na Internet (veja link abaixo). Se ele tivesse tido o cuidado de ler o nome do quadro, não passaria tamanha vergonha.
A pintura de 1670 é chamada “Homem segurando uma carta a uma mulher no hall de entrada de uma casa”, do pintor holandês Pieter de Hooch. Retrata uma mulher sentada perto da janela, segurando uma carta na mão direita e tendo um cachorro no colo, e outro à sua frente. À direita um jovem se aproxima segurando uma carta. Um olhar mais atento à essa carta, mostra que há algo escrito nela. Com certeza não é um iPhone que só seria lançado em 2007!
6. “Mr. Pynchon e o assentamento de Springfield”, de Umberto Romano, 1937
Na década de 1937, Umberto Romano, pintor italiano radicado nos Estados Unidos, pintou seis murais para a Agência Central de Correios de Springfield representando a chegada dos ingleses à América do Norte, em 1620, e a fundação de diversas cidades.
Um desses murais viralizou na Internet por um detalhe: um nativo segura um objeto pequeno, preto e retangular que os internautas afirmaram ser um celular.
Lógico que não é um celular, mas certamente é um objeto de origem europeia, estranho para o indígena e que, por isso, o examina com surpresa. Pode ser um espelho, frequentemente apresentado como objeto de troca e, nesse caso, o indígena estaria vendo seu próprio rosto refletido. Poderia ser também uma edição dos Evangelhos ou um livro de orações em formato pequeno, comuns na época.
A pintura tem outros detalhes que mostram o desconhecimento do pintor sobre a época que ele retratou como, por exemplo, a indígena nua em primeiro plano à esquerda e uma bruxa voando em uma vassoura no fundo.
7. Petróglifos de Val Camonica, Itália
Val Camonica é um dos maiores vales dos Alpes centrais, no norte da Itália. O local possui o maior complexo de desenhos rupestres da Europa, contendo aproximadamente 140 mil petróglifos. Camonica foi declarado Patrimônio Mundial da Unesco em 1979 por suas figuras esculpidas ao longo de 8.000 anos em rochas. As mais antigas são do 8º-6º Milênio a.C. e as mais recentes são símbolos cristãos como cruzes e chaves realizadas no final da Idade Média.
Entre os milhares de petróglifos estão as figuras antropomórficas apelidadas de “Astronautas” por trazerem à volta da cabeça um traçado que lembra um capacete. São datadas do ano 1000 a.C. e mostram figuras humanas esquemáticas portando armas em posição de luta.
Se os “astronautas” servem, hoje, para sustentar a teoria de alienígenas visitando a Terra, no passado já serviram para uma leitura ideológica nazista que buscou identificá-los como evidências da suposta raça ancestral ariana. Foi o que sustentou o pesquisador alemão Franz Altheim que, entre 1934 e 1936, visitou, repetidamente a área sob auspícios financeiros de Heinrich Himmler. Essa leitura logo recebeu uma versão fascista, proposta pelo antropólogo italiano Giovanni Marro em 1938.
Nem ancestrais da raça ariana, nem astronautas, os petróglifos de Val Camonica são registros de diferentes períodos feitos por diversos povos que habitaram a região. Sobre esses petróglifos há, hoje, uma extensa pesquisa científica.
8. Hieróglifos do Templo de Seti I, c.1290 a.C.
O Templo de Seti I, em Abidos, no sul do Egito, tem suas paredes e colunas cobertas com hieróglifos e relevos de deuses e, em alguns, ainda restam as cores originais. Um deles traz, junto aos hieróglifos, figuras semelhantes a aeronaves modernas. Foram chamados “hieróglifos do helicóptero” e ganharam até verbete na Wikipedia.
Para os leigos, é fácil identificar a imagem de um helicóptero e de outros dois veículos modernos – o que sustenta teorias mirabolantes sobre o Antigo Egito. Entretanto, há tempos os historiadores derrubaram essas teorias argumentando que as curiosas formas são resultado de uma sobreposição de imagens.
Em algum momento do passado, foi colocada argila ou gesso sobre o texto original para mudar o sentido da frase (tipo corretivo escolar). Com o passar do tempo uma parte da massa caiu, os dois símbolos se misturaram e formaram um efeito ilusório que as pessoas interpretam de um jeito absurdo.
A gravura inicial, feita durante o reinado de Seti I, trazia a frase “Aquele que repele os nove [inimigos do Egito]”. Ela foi então preenchida com gesso e esculpida novamente durante o reinado de Ramsés II, com a inscrição “Aquele que protege o Egito e derruba países estrangeiros”. Com o tempo, o reboco caiu, deixando as duas inscrições parcialmente visíveis e criando um efeito de hieróglifos sobrepostos.
9. Sorvete e wi-fi no Antigo Egito?
O Templo em Edfu, no Egito, é o maior templo dedicado aos deuses Hórus e Hathor de Dendera. Foi construído em três etapas, entre 237 a.C. e 142 a.C. As paredes internas foram decoradas com relevos, figuras de deuses e deusas em todo seu esplendor.
Em uma parede ao fundo, em um local escuro, há o relevo do faraó (reconhecido pelo uso da barba postiça e trazendo na cabeça o nemés ou khat, o tecido listrado, apertado na testa com pontas caindo sobre os ombros e preso atrás.
O faraó traz nas mãos objetos cujas formas lembram um sorvete e o sinal de Wi-Fi. Óbvio que não são nada disso! Trata-se de oferendas a Hórus, levadas em um recipiente com tampa e em uma cesta.
10. Templo das inscrições, Palenque, México
Em 1949, o arqueólogo Alberto Ruiz encontrou no Templo das Inscrições, em Palenque, no México, a lápide onde estavam os restos mortais de K’inich Janaab’ Pakal, um importante governante maia, de 615 a 683 d.C.
A figura sugere estar dentro de uma nave espacial e operando alguns controles. Na parte inferior, aparecem chamas de fogo, o que poderia ser a queima de combustível para propulsão. É possível observar, também, um aparelho de respiração próximo ao nariz do “astronauta” que parece estar flutuando.
Essa descrição fantasiosa foi feita pelo escritor suíço Erich von Däniken, autor de “Eram os Deuses Astronautas?”, lançado em 1968 e best-seller por anos seguidos. Era a época dos vôos espaciais, um ano antes do homem ir à Lua, e a teoria de Däniken convenceu milhões de pessoas, e ainda é atraente a muita gente.
O governante maia de Palenque está, de fato, viajando, mas não para o espaço, mas em uma viagem mítica de ascensão do inframundo para as alturas celestiais, onde ele renasce como uma entidade divina, paramentado com todos os elementos reais (joias de jade) e rodeado de elementos característicos da iconografia maia.
Conclusão
As interpretações mirabolantes não fazem mais que negar a capacidade criativa da humanidade atribuindo a elas seres extraterrestres e supostamente superiores. O trabalho árduo dos arqueólogos e historiadores tem oferecido explicações científicas sobre as obras e o pensamento humano à luz de seu contexto histórico e mitológico.
Se assim não fosse, imagine daqui a dois mil anos, teóricos extravagantes encontrando em uma escavação a figura da Peppa Pig: vão imaginar que seres alienígenas cor-de-rosa e de estranha aparência andaram pela terra em meio aos humanos?